domingo, 26 de fevereiro de 2012

Caçada branca

O aeroporto Nicola Tesla. Crianças correndo entre rugas de senhores e senhoras dobrados em corcundas e enredados entre panos negros e carmim trançado. As atendentes, altas com batons escuros, exibem sorrisos mecânicos e todos na sala de embarque observam, de soslaio, a cor do passaporte uns dos outros. Éramos todos obrigados a tê-los em mãos para embarcar.

A essa altura a fila de idosos e mães com crianças de colo embarcando na frente fazia minha testa umedecer e trazer aquele maldito calafrio que me percorria a espinha a uma semana e fazia meus dedos ficarem leves, prenunciando a ação. Tudo me dizia que já sabiam de mim.

Entrei no avião procurando especificamente pela minha poltrona. A todo custo evitando trocar olhares. Sentei na 17F, ao lado de uma bela menina de cabelos nos ombros. Pela janela as sombras da noite de Belgrado só permitiam ver as luzes da pista de decolagem. Implorava, intimamente, pela decolagem, e mais intensamente, por não ver sombras ou vultos na pista. Aquele avião não saía. Foi quando a exaustão do corpo me trouxe, no sono, lembranças fantásticas das últimas cinco noites. Tudo num longo flash, a conversa com Ferdinand Calmet numa noite de chuva no Charles de Gaule, as instalações da Ain Soph abaixo das ruínas de Löwenburg, as escoriações e as dores por todo o corpo, instrutores contraditórios, alimentação e sono regrados e essa viagem às pressas para a Cidade Branca atrás de um instrutor que desapareceu num vilarejo durante uma missão de rotina.

Havíamos perdido completamente o contato com a sede russa e isso não era sequer comentado. Teria que tratar-se de um assunto interno, problema de comunicações, algo que até então eles acreditavam que resolveriam em algumas horas. Um calafrio parecia percorrer em ondas as instalações do Ain Soph a cada hora que confirmávamos ainda não ter restabelecido comunicação. Agora sei que não resolverão. Precisamos de acesso aos Urais, sem eles não há suprimento, e sem ele, estamos perdidos. Recostando a cabeça na poltrona deixei a mente vagar pelas histórias que tem visitado meus sonhos desde a sete anos atrás, quando a notícia do falecimento de um primo de segundo grau que vivia viajando chegou junto com um envelope vinho, lacrado com cera vermelha. Em tempos de e-mail foi no mínimo, inusitado.

Mergulhando na poltrona, deixei minha alma se perder nas encruzilhadas sombrias das memórias. No tal vilarejo em que Lotar - o instrutor desaparecido - tivera feito seu último contato um garoto, ao reconhecer o broche na minha lapela, levou-me a uma mesa de canto onde disse que eu precisava ajudá-lo "porque é isso o que vocês fazem, não é?". Sei que tudo levava à sua namorada, Sladja, que estava a cada manhã mais pálida e fraca, para terror dos familiares que já haviam abandonado a crença nos oupires. Fiz o procedimento padrão: aluguei um bom cavalo, e, às cinco da manhã, estava às portas do cemitério do vilarejo. A hora era importante. Eu precisava do início do dia para operar sem perigo para mim ou para os demais, no intervalo entre a chegada da criatura e a aurora do dia. Passei pelos sepulcros dos familiares da menina até que o cavalo empinou, relinchou e se recusou a andar. Era do que eu precisava. Isso e as pegadas frescas me levaram a uma pequena tumba coletiva onde haviam várias gavetas em que se depositavam os corpos. Coisas modernas. Abri a gaveta e lá estava ele, um rapaz de seus dezoito anos, cabelos loiros e a face de um branco avermelhado como se houvesse sido maquiado ou esbofeteado. Um vermelho vivo. Minha mão escorreu pelo pescoço dele, levando a faca da lua e compensando o atraso do destino. Sladja melhorou em dois dias. Aos céticos da família expliquei que o pescoço é como o filé mignon, mas, enquanto pedia que ela mostrasse os dois pequenos furos entre seus seios, expliquei que existem criaturas com apetites mais... exóticos.

Trabalho padrão. Me incomodava que tenha se passado uma semana que perdemos notícia com nossa sede nos Urais. Um problema padrão de comunicação duraria algumas horas ou no máximo um dia para ser resolvido. Então ontem as comunicações com a Alemanha falharam também. Pego o jornal e não contenho o espasmo gélido nas mãos ao descobrir que grande parte das florestas Komi foram invadidas por laboratórios das indústrias farmacêuticas européias, principalmente alemãs. Estão todos loucos! Um ataque a Komi é uma declaração de guerra! Lembro-me da conversa, a sete anos, sobre a expedição geodésica espanhola e sua incrível descoberta, em 1735, no Equador. Com toda certeza sou procurado agora. Ainda devem haver outros instrutores e outros caçadores. Espero que pensem o mesmo que eu. Saio antes de atingir Nurembergue, desço em Viena e procuro caminho pela Espanha. O mais seguro agora é ir de navio. Se pretendo combater essa guerra é preciso refazer o caminho de Ulloa... ou ir à lua.

Conto e receita: Renato Kress

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