segunda-feira, 25 de julho de 2011

Perene

Passeavam ele e ela lentamente numa quarta feira ensolarada, procurando as sombras, com os braços entrelaçados e falando num tom que só o outro poderia ouvir.  Timbre era leve, pausado. No canteiro à frente da esquina Adamastor, 87 anos, diz a Constância, 84: Vou matar Eugênio!

A senhora estanca a passada já lenta e dispara, num olhar amedrontado:
- Você está louco?
- Ele morre hoje. - diz o senhor, com os olhos fixos nas pedras portuguesas à sua frente enquanto a mão de Constância desliza para longe de seu braço para se entrelaçar na outra mão - agora dedos cruzados - em sinal de súplica.
- Pára com isso! Sabe que não vai, que não pode, não vamos...
E o senhor esguio, frágil, de pescoço longo e ombros recurvos permanece estanque, braços esticados e punhos cerrados. - Hoje ele morre!

É quando ela abre um sorriso - dos muitos que ele não vê - e diz: É assim. Vá! Mate! Você sempre desiste dos teus personagens, se não no início talvez no meio. Têm fim mas não envelhecem, a maior parte, principalmente os mais interessantes como Eugênio, morrem prematuros na ideia da ideia, enquanto ficamos só nos dois. Já percebeu o quanto a casa está despovoada?

O longo pescoço elevou a cabeça até os olhos de Constância.

- É. Despovoada! Nunca percebeu? Quando casamos a casa tinha eu e você e mais de uma centena de personagens, era o menino Tinoco, o capataz Alberico, o padeiro Vico, a dançarina Rubra, a pianista Laura, aqueles ladrões, os irmãos Katz, toda a família Figueira... isso sem contar os animais, o gato Klimt, a garça Graça... amei cada uma das tuas criações. Casei com teu corpo, mas levei principalmente esse parque maravilhoso de diversões, esse inexplicável circo de criações fantásticas na tua mente. São esses os nossos filhos que ficam, enquanto Lidia, Manoel e Clara se vão. Não gosto quando você mata nenhum deles. Desapareça com ele, mas não mate. Quero dar um destino aleatório e romântico a Eugênio no café da manhã de amanhã. Não desista dele!

- Ele é um covarde! Um néscio!

- Não desista dele! - disse a mão esquerda dela encontrando o punho cerrado dele...

- Você me acha um covarde? Eu desisto muito fácil? - disse a mão direita dele a caminho da dela...

E de si para si, entre as orelhas de Constância, ficaram sozinhas as palavras: "se eu tivesse desistido uma única vez..." e o sorriso e o beijo e o caminho de casa.

Texto e receita: Renato Kress

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